O iMARGINÁLrio – 01
03 de Março de 2011
O dia amanheceu claro na zona norte, Maria acordou na correria, atrasada, procurando a câmera super foda da sua irmã para fazer a viagem. Descobriu que, por irresponsabilidade sua, a câmera estava no carro do cunhado e que ele não chegaria a tempo. Desesperada e com medo de prejudicar todo o trabalho de campo planejado, ligou para o chefão-editor:
- Ei Tomé, uma péssima notícia.
- Oi Maria Madalena! Bom dia! O que foi?
- A câmera viajou, só chega 09h. Não vai dar tempo!
- Arruma com outra pessoa. José não tem não?!
- Oxe, massa. Vou ligar.
Madalena liga umas 4 vezes. Pronto, era o que faltava – pensou. José deveria estar dormindo depois de uma noite jogando Street Fighter IV, desistiu da viagem. Apressada e aflita se arruma nas carreira. José liga. Ele levará a câmera.
Pegou o 513, desceu na Epitácio Pesssoa. Tomé ligou. Aquele maldito foi pegar Paulo no intermares e nem pra oferecer uma carona. Pedro estava no mesmo ônibus que ela, desceram juntos e pontuais. A fome apertando. Primeiro chegam Tomé e Paulo, agora só faltava Tomé. Cadê aquele mulesta?
Chegou. A fome batendo. Todos no carro. Tomé queria saber das perguntas que todos prepararam para o Secretário de Cultura de Alagoa Grande. Madalena queria colocar músicas, José já pescava de sono, Pedro quieto. Paulo nunca não parava de falar, lembrou do Shaolin.
Enquanto as ótimas músicas tocavam, surgiu a ótima idéia de comer tapioca. Era um lugar rápido, de café quente e barato. Gostaram muito. No cardápio, todos estranharam a tapioca que tinha carne de sol e leite moça. Muito estranha. Depois do lanche foi bem ligeiro chegar - com as vozes desafinadas acompanhando Marisa Monte e José rindo sozinho de uma doida bêbada que queimou o pé soltando fogos num churrasco, ali, perto de Alagoa Grande.
- Pergunta pra esse cara da moto onde é o museu de Jackson do Pandeiro.
- Moço, sabe dizer onde é a casa de Jackson do Pandeiro? É isso? – perguntou Paulo.
- É só ir direto, tem uma agência dos Correios. É perto da parede Verde. Uma casa azul.
- Brigado.
Paulo não agüentava mais aquela quentura e o sol. A quentura e o sol. Correu pra dentro do museu. Uma Virgínia receptiva nos atendeu:
- Bom dia! Sejam bem vindos e bem vinda. Vocês que estão esperando seu Lázaro? Querem conhecer o museu enquanto ele não chega?
As capas dos LPs de Jackson do Pandeiro estavam ali na da parede direita, eram muitas, mas não todas. Ele foi o maior ritmista do mundo, alfabetizado aos 22 anos, filho de cantadora/dançarina de coco de roda com um oleiro. Foi morar no Rio de Janeiro ainda jovem, nunca negou que era de Alagoa Grande. Casou três vezes, não teve filhos – era infértil. Sua ex-esposa faleceu no sábado passado, morava em Recife, Almira Castilho, aos 87 anos, dia 27 de fevereiro. Que triste.
Lá na parede esquerda estavam notícias e outras coisas. Numa entrevista Jackson disse que não gostava de política, não cantava isso porque o povo não entendia e, por isso, cantava a vida. Lenine dizia, lá na mesma parede, que Jackson era a cara do domingo. Engraçado, Jackson, tu canta a vida. A vida do povo que leva a Sebastiana pra dançar xaxado e também canta a vida do povo que trabalha no canavial, da briga de marido e mulher, da falta de dinheiro, questiona o progresso brasileiro, diz que o crime não compensa e tem pena do moleque do morro. Será que isso também não é política? As expressões culturais retratam a realidade. A vida está imersa na política, ou seja, cabe ao artista a complexa tarefa de transmutar a realidade em figuras, sons, cheiros, sentidos... Através das figuras que Jackson passava, nas suas letras e ritmos, podemos imaginar em que sociedade e época ele viveu, para que povo e com que povo ele criou seus ritmos. O maior ritmista dos tempos.
Enfim, Jackson voltou para Alagoa Grande no fim de 2008. Foi na criação do seu museu que seus restos mortais, roupas, fotos, composições manuscritas, discos e vídeos formaram grande parte de suas lembranças.
- Maria, olha que engraçado, tem um tijolo ali, é da usina Tanques, a mesma que Margarida Maria Alves foi líder sindical e a mulher disse que Jackson morou por lá perto. Pedro falou com muito entusiasmo, afinal, todos estavam ali para saber um pouco mais sobre a defensora de direitos humanos, lutadora por direitos trabalhistas, flor, Margarida.
Seu Lázaro, bem orgulhoso, pediu para que os “jornalistas” sentassem para ver a gravação que Jackson dizia que era de Alagoa Grande – PB. Não puderam ficar muito, o tempo era curto. Partiram para a Rua Dom Pedro II, a rua da antiga burguesia da cidade, só casa dos antigos usineiros, dizia Lázaro. Logo no início estava o Teatro Santa Ignêz, terceiro teatro da Paraíba, do começo do século XX, orgulho da cidade. A criação de Polônio Zenaide passou um tempo esquecida - a nova geração de artistas da cidade foi para outros palcos, mas o Teatro foi revitalizado e tenta cumprir seu papel.
No meio das falas dentro do Teatro, Tomé revela a ansiedade de conhecer mais a história de Margarida Maria Alves, Lázaro começa a contar um pouco a historia a partir da figura de Judas, o tal mandão coronel da PB, chefe político e econômico de Alagoa. Era um usineiro, era um tempo em que a cidade era ilhada de cana-de-açúcar, só o coronel tinha mais de 7000 hectares de cana! Maria ficou se perguntando quanto é que isso dava em km. Se alguém pudesse ler os pensamentos de Pedro, diria que a imagem passou mais que nítida em sua cabeça quando Lázaro falou da “Lei do cão” que acontecia quando os trabalhadores morriam nas caldeiras ou quando as suas redes de dormir eram cortadas para que eles acordassem e começassem a trabalhar. Vão dizer que não sabem que também foi Judas que mandou matar Pedro Teixeira em Sapé?
José gravou tudo! Paulo ficava abismado com as coisas que esse Judas fazia com os trabalhadores da usina, e a fala de seu Lázaro assustava e prendia a atenção:
- Margarida ajudou a organizar as Ligas camponesas da região, a maioria foi esmagada pela Usina Tanques! Eu quando militava pelo PT, Margarida já não era viva. Quem era viva da minha época era Maria da Penha, que também foi assassinada. Essa tinha uma carga política muito boa, eu ficava besta com as coisas que ela dizia.
- E como é? Não deu em nada a morte de Margarida?
E todos sabem que no final: os que têm dinheiro saem impunes. Até hoje Pilatos, genro de Judas, mandante da morte de Margarida – dizem- está livre, dono do Spazzio em Campina.
Por sorte não tinha só peça ruim em Alagoa, o povo lutador teve referência também num advogado popular, muito amigo de Lázaro, o Israel. Ele denunciava a vida fácil dos usineiros, fundou o PT da cidade, militou com Tiago. Também foi assassinado, coincidentemente na mesma semana que havia sido nomeado Procurador em Guarabira.
A mulher de Lázaro entra depressa no Teatro e o chama no canto. Lázaro volta desconsertado. Revela que é melhor adiantar o passeio, para finalizar logo, pois tem compromisso a tarde inteira. Tomé insiste em falar sobre Israel, afinal, era mais um defensor de Direitos Humanos na nossa terra e pouco conhecido! No meio da fala empolgante revela que tem medo de ser perseguido por estar envolvido com processos da cidade de Itambé.
- Por favor, vamos terminar que está ficando perigoso conversar muito por aqui.
A partir de então todos ficaram apreensivos. Não tinham certeza de qual recado seu Lázaro queria passar, mas as historias estavam tão intensas e umas atrás das outras que o clima de passeio tornou-se tensão. Uma foto na frente do Teatro para recordação e pronto! Entraram no carro. Agora iriam direto ao alvo: o memorial de Margarida Maria Alves.
Paulo enquanto ajeitava-se no espelho, dando uma conferida nos óculos escuros, teve a impressão de que dois caras de moto estavam atrás do carro desde a saída do museu, pensou e resolveu que seria besteira comentar, afinal, a cidade era pequena. Deu um “tchau” para as colegiais de farda bonita e deixou pra lá.
Quando chegaram em frente ao Museu, seu Lázaro indicou onde Margarida foi morta. Ela estava dentro de casa quando alguém a chamou na porta, ela vinha comendo uma espiga de milho. Quando saiu de casa, dois homens de moto – capangas de Pilatos – dispararam balas de calibre 12 na cabeça dela; no mesmo instante a luz da cidade inteira foi cortada e os motoqueiros sumiram.
Todos ficaram espantados com a covardia do ato, contra aquela que abriu mais de duzentas ações para defender os trabalhadores rurais, que venceu tantas lutas... Continuaram conhecendo os cômodos da casa que guardavam a história de Margarida. Viram de fotos dos familiares até cartas internacionais de apoio e objetos pessoais. A mão armada do latifúndio, Margarida: Quantos ainda morrerão?
Na saída despediram-se animados e satisfeitos. Seu Lázaro disse que os levariam até a saída da cidade, ia guiando de moto. Presenteou a garotada com um DVD sobre Jackson, Tomé emprestou primeiro pra Maria. Prosseguiram.
O carro mal deu a partida quando todos foram surpreendidos com um estouro. Eram motoqueiro que tentavam acertar a roda da moto de Seu Lázaro! Ele gritou para que corrêssemos. Tomé, assustado, não sabia o que fazer. Paulo e José gritavam para Tomé acelerar! Pedro e Maria ainda tentavam acreditar no que acontecia.
- O que é isso!?
- Acelera ! Acelera!
- O carro não vai agüentar essa estrada! O que é isso?!
- Pega a ponte! Pega a ponte!
As pessoas da cidade não entenderam a perseguição. E logo que se aproximaram da saída da ponte para a estrada de terra os motoqueiros voltaram a atirar. Maria perguntava se Seu Lázaro tinha conseguido sair bem. Ninguém dava importância! Pedro mandava que todos do banco de trás se abaixassem.
Tomé não parava de acelerar, a moto parecia cada vez mais distante. Todos estavam muito assustados. Paulo tentava ligar para Tadeu ou João Batista, mas o celular da Oi não funcionava em Alagoa. Não sabiam se a policia já estava envolvida na perseguição e não quiseram arriscar.
- Acho que despistamos! Disse Tomé, ainda apavorado.
Sem querer chegaram num Engenho, era uma espécie de restaurante da cachaçaria Volúpia. Ninguém sabia o que dizer e nem o que fazer. Resolveram descer e analisar a melhor decisão a ser tomada. Os celulares ainda não funcionavam. Por coincidência, Paulo avista um grande amigo do ensino médio que era de Alagoa e cursava na capital. Para disfarçar o alvoroço – e não sabiam quanto tempo teriam até que descobrissem que estavam ali ou se estavam os esperando na saída para João Pessoa – montaram um plano.
Para resumir: foi encaminhado que Paulo iria com o seu amigo, de carro, fazer uma ronda nos arredores da cachaçaria e nas principais saídas da cidade. Ligariam de algum numero da Tim para a própria cachaçaria avisando se havia algo suspeito ou se o caminho estava seguro para a turma do Jornal sair em segurança, daí então, Paulo e seu amigo partiriam para JP.
E assim se procedeu. Como isso levaria tempo. A turma, que aguardaria a ligação, resolveu não arriscar. Estavam assustados. A idéia da vez foi partir para Areia – cidade vizinha. E quando desse um tempo, retornariam à João Pessoa. Subiam a serra um pouco mais calmos, Tomé sentia o peso da responsabilidade, ele que marcara a viagem, ele que tinha envolvimento com processos perigosos, e isso martelava os seus pensamentos. Pedro pensou que nunca mais esqueceria esse dia, ele que tinha recém entrado no Jornal e recém saído do pacato jornal do Uiraúna, onde nunca fora perseguido. Maria de tão nervosa tenta dormir, José tentava acalmá-la em seus braços.
Ninguém tinha coragem de falar. Estavam processando. Não podia ter acontecido isso de verdade. Será que foi um engano? E se não foi? Quem haveria interesse de caçá-los?
Desligaram o carro na praça principal de Areia. Conversaram muito sobre o acontecido. Não deixaram relatar os encaminhamentos tirados dali.
Mas o que se pode falar, e que todos tem certeza, é que a próxima edição do Jornal foi vivida por eles, e agora sentiam na pele um pouco do que os defensores de Direitos Humanos devem sofrer. Pensaram no que um projeto político e visão ideológica de vida pode trazer àqueles que lutam por um mundo melhor, em quantas escolhas e abdicações os militantes sofrem, além de retaliações, por conta de suas escolhas.
Depois desse dia o Jornal, que estava passando por reformulações no seu quadro de colaboradores e de postura política, teve uma consolidação que ultrapassava o fim acadêmico ou o objetivo da informação. Todos queriam mais.
Um escudo e um espelho. Era isso que sentiam e não sabiam expressar.
Vão conseguir?
A terra é de todos!
A terra é de ninguém!
Pisarão na terra dele, todos os seus.
E os documentos,
Dos homens incrédulos,
Não resistirão à sua ira!
(...)
Filhos do caldeirão,
Herdeiros do fim do mundo,
Queimai vossa história: tão mal contada!
[Em Alagoa Grande, hoje, vivem cerca de 28.000 pessoas.
Cerca de 18.000 vivem de bolsa-família. A Prefeitura é a maior empregadora: são uns 5000 servidores.
A periferia da cidade foi construída pela Usina Tanques, ela começou a construir miseráveis no momento em que comprou Engenhos vizinhos e expulsou seus trabalhadores.
E então, na década de 50 era formada a periferia da cidade.
[Um tempo depois é a usina que fecha e desemprega mais de 500 trabalhadores.]