quinta-feira, 4 de agosto de 2011

É o povo na arte, é arte no povo/ E não o povo na arte, de quem faz arte com o povo¹


A imagem do homem que luta pelo direito à terra e por sua sobrevivência é editada - nos grandes jornais e revistas – sob a película e caneta dos defensores do latifúndio e do agronegócio brasileiro. É um problema histórico que é contado pela grande mídia numa versão maniqueísta baseada no embate Herói x Vilão. Nessas histórias, mal contadas, o herói é aquele que mais se assemelha ao autor do texto.
Quando lemos na mais respeitada revista brasileira que criminosos invadiram a propriedade de uma família rica, tradicional e – acima de tudo - trabalhadora, a qual produz o bastante para contribuir com o desenvolvimento econômico brasileiro, já esperamos um clímax com direito a tumulto, polícia, prisão e assassinatos. O final feliz seria a família com sua paz restabelecida, certo? É essa narrativa que costumamos encontrar. Nela, odiamos àqueles que violam o direito à propriedade privada! Arruaceiros, baderneiros e vagabundos!
No Brasil, 40% das terras – das propriedades privadas – não servem para nada, são improdutivas. Segundo o IBGE, 1% da população detém 50% das terras brasileiras. Aqui, existem 4 milhões de famílias sem terras, desempregadas, sem propriedade privada, com fome, com sede e, sobretudo, cansadas de esperar por uma real ação do Estado.
Esse dado, absurdo, nos faz pensar se todas essas histórias que comumente lemos, sobre esses sem terras, que se movimentam para lutar por uma vida melhor, não seriam também absurdas. Vez por outra, encontramos outros narradores, renomados, mas esquecidos, que se identificaram com a luta por uma vida digna e narraram - em protesto, em esperança e em denúncia - a história de como é conquistar uma vida digna.
Lembremos das últimas violações aos direitos humanos: dos recentes assassinatos de trabalhadores rurais no Pará, dos mais de 800 homens e mulheres que trabalhavam em condições análogas a escravos num latifúndio (usina Infinity) no Mato Grosso do Sul, da perseguição aos trabalhadores rurais (Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, entre 1985 e 2009, foram assassinados 1.469 trabalhadores rurais. Apenas 85 casos foram julgados e somente 19 mandantes receberam condenações). É por essa realidade triste, que consideramos um absurdo todas as histórias que não tem por protagonistas e heróis os Movimentos Sociais – lutadores do povo.
São heróis por que combatem o agronegócio - devastador de florestas, utilizador de mão-de-obra escrava, provocador da expulsão de quilombolas e indígenas dependentes das florestas. São heróis por que erguem a bandeira da Reforma Agrária – que vai garantir a auto-subsistência dos agricultores e a soberania alimentar – 70% dos alimentos consumidos nas cidades são produzidos pela pequena agricultura familiar. Graças ao Movimento Sem Terra, das terras desapropriadas 80% foi por conta das suas pressões organizadas nas ocupações das propriedades, fazendo valer o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que versa sobre a função social da propriedade.
Lemos e assistimos tantas histórias mal contadas! Mas, e se procurarmos aquela ficção, com um enredo quase real, com uma trama que se confunde tanto com a realidade, que defende e está ao lado do povo? Como exemplo, podemos encontrar um Patativa do Assaré, que num Eu quero simples, exprime o desejo de 4 milhões de famílias de trocar a casa de palha, por confortável guarida, de ter uma terra dividida pra quem nela trabalha; falando da Reforma Agrária e pedindo atenção ao Congresso para a situação do camponês e da camponesa.
Tem o João Cabral de Melo Neto (eternizado, também, pela interpretação de Chico Buarque do Funeral de um Lavrador) que retrata o tormento do trabalhador que conquistará um pedaço da terra só com a sua morte, pois, por fim, é a conta menor que tirou em vida, é a parte que lhe coube do latifúndio, é a terra que muitos queriam ter visto dividida.
E no sofrimento e na luta que Os Sertões, de Euclides da Cunha, deixa nascer junto com a nossa indignação - a qual ajuda-nos a buscar por mais elementos históricos que expliquem a injusta apropriação da maioria das terras pela minoria dos homens. O livro retrata o fim da escravidão, a vida de homens sem trabalho e sem terra. Lemos o massacre de Canudos e lemos a morte de pessoas assassinadas pela aliança da República com a imprensa e com os latifundiários. Uma obra factual, escrita em 1902, que consegue nos remeter a tanto deste 2011, reforçando que o problema é histórico e que precisa ser resolvido radicalmente. Apostamos que a solução vem junto com a Reforma Agrária e no reconhecimento das terras indígenas e quilombolas.
A Constituição Federal de 1988 e a Lei Agrária Complementar, em seu texto, tratam da Reforma Agrária, da desapropriação das terras improdutivas. É uma literatura seca, objetiva, ainda não encenada ou transfigurada para a realidade. Mas com uma capa de autoridade, que está tão bem guardada e distante de quem precisa lê-la, que ninguém sabe a hora certa de utilizar. Será que quem a guarda está do lado dos latifundiários e da mídia? Será que são a mídia e o latifúndio que abrem e fecham quando querem os textos normativos?
Hoje eles nos matam / Mas já usaram nossos braços/ Um dia terei terra/ Mas ela já não servirá/ Estará na minha boca/ Não haverá como plantar/ Ao invés de eu ganhá-la/ Ela é quem me ganhará/ Minha nuca é o alvo /Preferido dos jagunços/Falam em reforma agrária/ Mas só vejo latifúndio²
Enquanto alguns escrevem grandes obras artísticas que contam o povo, com o olhar do povo; enquanto outros inventam histórias do povo e para as elites – pessoas sem-terras permanecem na luta, fazendo acontecer as próximas páginas que serão narradas ou distorcidas, mas que ficarão na história do país.
Enfrentar a fome, o desemprego, a mídia, o agronegócio - o capital - é papel protagonizado pelos movimentos de luta pelo direito à terra. É a partir desta contra-hegemonia, que descrevemos hoje, que perceberemos quem será para nós, o grande autor das grandes mudanças no modelo agrícola, no meio ambiente e na estrutura da própria sociedade. E então, os vilões não terão mais onde escrever.

Antônio tinha razão, rebanho da fé. A terra é de todos! A terra é de ninguém! Pisarão na terra dele, todos os seus. E os documentos dos homens incrédulos, não resistirão à Sua ira!³

¹ Trecho da música “Etnia” de Chico Science e Nação Zumbi;
² Trecho da música” Pontal”, da banda paraibana Cabruêra;
³Recorte da Profecia do Pajé Cauã - extraído do livro “Lampião Seu Tempo e Seu Reinado”, vol. 1, Frederico Bezerra Maciel – Interpretada pela banda Cordel Do Fogo Encantado (Testamento da Ira);


Texto para o Jornal Contraponto (de 06 de Agosto)

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Quando seu professor do curso de Direito pede para que você faça um trabalho e aponte como o Direito pode resolver um conflito, pq é mais fácil de dar uma solução dentro dos moldes, por ex, do direito civil? E quando seu professor te pede pra dar sugestões jurídicas para desvulnerabilizar um grupo? Segue abaixo, as considerações que levantei sobre o racismo, para um dos professores do semestre passado - não sei se era isso que ele queria ler 
...  na verdade, até acho que ele não leu.


Proposições Jurídicas: A questão negra será resolvida pelo Direito?


 Todos nós sabemos que os negros foram raptados de suas terras natais e vendidos como peças de trabalho por questões econômicas. E foi no “evoluir” destas questões econômicas que a vulnerabilidade negra perpetuou-se e enraizou-se - ou seja, o sentido econômico tomou outras formas, mas sua essência perversa de subjugar raças, sexo, naturalidade etc permaneceu.


Numa análise simplista, podemos perceber que hoje os descendentes de negros ocupam em maioria as camadas mais pobres da população brasileira, vejam só a semelhança com outrora, hoje a continuação daquela sociedade é mantida pelo sistema econômico vigente (Capitalismo ou Neoconservadorismo ou Neoliberalismo) em cooperação com as leis do Direito que regem tanto a sociedade quanto o mercado.


No entanto, hoje, os negros estão organizados em movimentos de Luta. Uma frente combativa à mentalidade histórica que criou os atuais racistas (homofóbicos, moralistas, desenvolvimentistas etc), e, uma frente perseguidora de aberturas políticas no Direito. Sim, políticas. As políticas públicas são um espaço de disputa entre os poderes dominantes e os segregados, pois, é de interesse de parte da população brasileira (condicionada pela formação da mentalidade histórica do país) que os negros não ocupem outras posições de classe no país, é interessante para algumas camadas que os negros continuem a serem “negros” que nem antes do 13 de Maio de 1888.


Mas é quase espantoso – se não soubéssemos o que essa data significou seria muito mais: por que a Lei assinada há mais de cento e vinte anos significou para a economia a qual o Brasil era (é) subverniente um passo desenvolvimentista para o mercado industrial. E para os povos libertos? Os negros seqüestrados passaram a viver bem? Não.


Hoje há uma série de Leis nacionais e internacionais que versam sobre a questão da vulnerabilidade histórica negra.  Lógico, sem uma visão histórica com radicalidade da questão negra no nosso país, as ações afirmativas, as políticas públicas e nenhum outro tipo de reparação fariam sentido. Visto que, a Luta do Movimento Negro pela sua libertação e pelo respeito da sociedade branca, ocidental e cristã é longa, são quinhentos anos de seqüestros, torturas e mutilações culturais comparados a pouco mais de cem anos de “liberdade”. E o que foi feito para mudar a mentalidade histórica?


O Direito, como espaço político hegemônico, vem a doses homeopáticas e por pressão desses grupos vulneráveis organizados tentando re-emoldurar os erros contínuos do passado. O importante a frisar, é que não é o Direito em si que resolverá os conflitos da sociedade atual, no entanto, será a própria sociedade em conflito que tensionará o Direito posto (como vem acontecendo) para que ele se desestruture minimamente e sirva aos grupos que tem seus direitos historicamente violados, como no caso: os negros. E é a Luta dentro da sociedade que reflete e direciona - mesmo com as dificuldades condicionantes, todo novo aparato Legal que tenta servir como “borracha-social” e diminuir aquelas tensões.


Podemos hoje perceber, então, que o racismo escondido nos indivíduos de hoje faz parte de um processo social que transmite à gerações posteriores os mesmos ensinamentos do individualismo, da concorrência, da dominação de outrora só que com máscaras distintas. Nestas máscaras distintas incluímos o Direito, pois, ele quando letra - garantidor dos direitos indistintamente da classe, da raça ou da religião - esconde o Político. Pois, o que restou depois dos 500 anos de escravidão e 120 anos de liberdade foi a exclusão dos negros dos mais variados espaços sociais, ou seja, a normatividade garantidora de todas as gerações de direitos, que temos atualmente, não chegou por algum motivo à classe negra, a qual encontra-se em sua maioria nas comunidades mais pobres do país.


Então vemos o Estado agir minimamente, ainda, para reparar todo o exposto acima através de Leis nacionais e/ou Tratados Internacionais, e ainda com a desaprovação de grande parte da população. Então, falar de soluções Jurídicas para desvulnerabilizar o grupo Negro é incompatível com a sociedade atual que está em processos de mudanças e mentalidades, no entanto, é possível se falar que o Direito é uma ferramenta histórica para mudar o caminho da mentalidade da sociedade no mesmo processo contínuo da nossa história. E é ferramenta utilizada pelo operador jurídico, mas fabricada - à ferro e fogo - pelos Negros Organizados.


Essas ferramentas jurídicas tomam diversos formatos, são Políticas Públicas variadas para inclusão em Instituições de Ensino, para a mulher negra grávida; o Estatuto racial; a própria Constituição Federal de 1988; a Lei anti-Racismo; convenções de Direitos Humanos etc.


A partir dos exemplos, percebemos o quanto essas ferramentas não são satisfatórias justamente porque não foram/serão elas que mudaram/mudarão, a partir de sua vigência, o racismo escondido nos indivíduos brasileiros e no cinismo da política do país. Mas elas amortecem os debates, tentando direcioná-los à uma transformação mínima social.


Considerações


O Direito não solucionará e nem será o responsável pela desvulnerabilização dos negros no país. Há vários atores sociais, escondidos pelo ordenamento, que disputam pela perpetuação da dominação sobre os negros ou pela sua emancipação. Durante o desenvolver do trabalho, concluímos que a luta por direitos é fora do Ordenamento para  alcançá-los de fato.


Aprendemos que essa tensão emancipação x dominação, atualmente, se dá de diversas formas, um exemplo é a questão da demarcação das Terras Quilombolas, que é disputa clara de interesses econômicos dominadores em contraposição à interesses sociais e culturais, básicos, de povos que se fixaram historicamente em um território.


Percebemos que as oportunidades concedidas aos negros no processo de libertação não existiram, e por isso, é difícil encontrarmos negros ocupando cargos estimados pela sociedade, mesmo quando eles são maioria numérica na região.


Percebemos também, no decorrer das aulas de Direitos dos Grupos Socialmente Vulneráveis, que vem se perpetuando um modelo de sociedade que não respeita o conviver em sociedade, ou seja, que tolera as minorias que existem, mas de fato, não suporta que essas minorias convivam com os mesmos direitos. É o que acontece, por exemplo, na questão negra: os negros que tem condições financeiras são cotidianamente confundidos com bandidos ou empregados de lugares mais pomposos.


Finalizamos o trabalho, assertando que a sociedade não muda de uma hora para outra. É muito importante que o Direito se modifique e passe a servir aos grupos vulneráveis, no entanto, é mais importante ainda ressaltar que para modificar, faz-se necessário que estes grupos continuem se organizando em movimentos de defesa e luta por seus Direitos.


Afinal, são as minorias os protagonistas de sua história social. Para que a mentalidade racista advinda do processo histórico de séculos de dominação pela cor se dilua no espaço-tempo, serão mais anos de tensões sociais entre os grupos organizados na conquista de direitos e o ordenamento jurídico aplicado.


Nós, o grupo, finalizamos o trabalho desenvolvido, idealizando um Direito voltado para a transformação social. E com a intenção de nos tornarmos mais que “operadores” da “máquina” técnico-jurídica. Nosso horizonte é o trabalho dentro do Direito para a transformação que só se dará quando, nós, tomarmos consciência de que servimos ao Povo, à classe oprimida, e somos parte da ferramenta de emancipação social completa.

E por isso citamos Berthold Brecht, formado em Direito, poeta alemão do século XX, sensibilizado pelo povo dominado na época, enquanto o direito apenas servia aos ricos, na poesia intitulada Nada é impossível de mudar:


Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. 
E examinai, sobretudo, o que parece habitual. 
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.